sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Máscaras


O ônibus seguia lento e lotado seu trajeto em direção ao centro da cidade; apenas um assento estava desocupado e era ao lado de um rapaz de vinte e poucos anos.
O jovem, negro, de fisionomia séria, com fones de ouvido imerso na música, era figura chamativa; com correntes grossas de prata nos pulsos e pescoço, boné mau colocado ao estilo etiqueta pra fora, brincos e tatuagen no braço. Bermuda nos joelhos e tênis sem meia, meio rapper meio skatista.
Entravam passageiros apressados no coletivo e ignoravam o assento vago dirigindo-se para o fundo e se postando de pé, mesmo em um final de dia após o trabalho. Os que embarcavam olhavam o assento ao lado do jovem e preferiam o aperto do fundo do ônibus a sentar ao seu lado...
Em outro ponto da cidade, a avenida engarrafada pareava os veículos de metro em metro.
Ao meu lado, parado, um Citroen novíssimo com dois rapazes e duas garotas em clima de festa.
O motorista, assim como os outros ocupantes do carro, estava muito bem vestido; camisa social branca, relógio combinando e cabelo de corte moderno com gel e tudo mais. Todo sorridente aguardando o próximo verde do semáforo.
O que se segue é inesperado para todos.
Logo a frente um fiat Uno faz uma troca de faixa sem dar seta e fecha o Citroen, obrigando o motorista a frear bruscamente. Com os braços pra fora os dois rapazes gesticulam para o condutor distraído do Uno, que parado no sinal, desce do carro afim de averiguar se ouve algum choque entre os veículos.
Era um senhor magro, mirrado, de uns 50 e poucos anos, calça jeans e cabelos grisalhos.
Irado, o motorista do Citroen desce do carro e parte pra cima do motorista do Uno, desferindo-lhe forte soco, sem discussão, sem reação, quebrando o nariz do senhor que jorrou sangue instântaneamente.
Ao correr na direção dos dois para tentar impedir o pior, abri a porta do Uno para o agredido sair o quanto antes do local, e o jovem bem vestido do Citroen me diz alterado: " O cara me fechou ali pô! " -já se dirigindo de volta ao seu carro e sacando um lenço para limpar cuidadosamente o sangue do motorista do Uno de sua camisa de microfibra branquíssima, agora suja, o que me pareceu incomodá-lo naquele momento.
Atônito, o senhor do Uno se demorou um pouco a continuar seu trajeto, ainda atordoado pelo golpe. Não me pediu ajuda alguma, apenas repetia em choque que havia decorado a placa para registrar ocorrência, estava inconformado. Não ia adiantar, o nariz ainda assim continuaria quebrado. Segui meu caminho e todos os outros também...
No ônibus para o centro, o jovem rapaz negro continuava sozinho no assento de dois lugares e os outros passageiros se apertavam e sacudiam de pé no corredor. Talvez seu visual inspirasse medo, não sei, então muitos permaneciam de pé ao lado dele sem aproveitar o conforto de um assento. De repente, uma senhora de idade já avançada adentra o coletivo; cheia de sacolas e se esforçando para manter o equilibrio no veículo saculejante. Antes dela girar a roleta por completo o rapaz lança um olhar para a idosa e se levanta prontamente, cedendo o seu lugar. Ela agradece com um sorriso carinhoso e o jovem acena com a cabeça afirmativamente se postando de pé pelo resto da viagem.
Logo o lugar ao lado da idosa foi ocupado por outro passageiro que antes o desprezara e a viagem seguiu normalmente...
Estive presente nas duas cenas, em momentos distintos,óbvio. Não posso medir a revolta do senhor do Uno agredido pelo jovem feroz e bem vestido.
Também não sei dizer se o rapaz do ônibus percebeu que ninguém quis se sentar ao seu lado.
Sei apenas que é muito provável que o inconsciente popular esperasse que a gentileza do rapaz do ônibus fôsse praticada normalmente pelo "bem apessoado" motorista do Citroen, e que os socos de raiva pudessem ser mais normais para o jovem do ônibus.
Toda generalização é burra, então já adianto que não tenho a intenção de fazê-la, mas esses são sinais de uma sociedade que se apoia em estereótipos de aparência para criar as personalidades. Julgar pela aparência, isso sim é estúpido.
A roupa nova e o carro importado não foram suficientes para esconder a agressividade de seu dono. Assim como o desprezo não foi capaz de suprimir a humanidade do jovem negro de aparência humilde.
É raro vermos gestos de caridade e respeito ao próximo com espontaneidade como vi nesse ônibus, tanto quanto é corriqueiro assistir a cenas de brutalidade em situações banais como as do sinal de trânsito.
Mas é certo que precisamos apurar nosso olhar, despir nossa visão de preconceitos, para quem sabe podermos enxergar mais vezes a bondade que ainda existe, onde nossa estupidez só enxerga diferença e a repudia com a indiferença.

Nota: Os dois casos são reais, eu estava de fato lá.

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